normal speed, please
A viagem, enfim
Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido.
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família «vamos lá fazer essa viagem».
Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa.
Por mais que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. É verdade que empurrava menos, talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no carro alucinante.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën.
E conseguia, lá se metiam todos, mais ou menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
- Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a mulher, já arreliada,
e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em que ele se envolvia sem culpa.
- Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão menina.
Contou tudo. Deitado, contou-lhe o que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro.
Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa:
- Vou derivar, menina.
- Derivar?
Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa.
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
E, de repente, tornou a sonhar.